28 de novembro de 2010

um

27 de novembro
1h 30min.
 Fiquei sentado na mesa um tempo. Alana ficou vendo pela grande porta de vidro a varanda sendo alagada pela tempestade. Não chorava. Mas aparentava uma fraqueza quase mortal. Eu não podia, mas pensar em nada. Aquele lugar ainda tinha o cheiro dela. Eu ainda tinha o calor dela em mim. Como pode ser? Alana se aproximou vagarosamente acho que pra não me assustar...
- Posso te levar pra vê-la!
 Tomei um bom banho, foi confortante, a água se confundia com minhas lágrimas num choro suave e sem som. Eu nem parecia chorar. Estava me sentindo uma múmia.  A toalha estava sobre a cama. Mamãe com certeza iria brigar se tivesse visto isso. Meu cabelo não secou por completo, estava congelando. Talvez minha pressão estivesse baixa. Abri o guarda-roupa, procurei a roupa que me deixa-se mais discreto, a que podia fazer isto estava molhada, meu casaco vermelho sempre estava ali pra me ajudar nessas situações, mas cadê ele agora?
 Parecei que todas as minhas roupas eram fantasias de carnaval, nada se encaixou. Vi o pacote cinza, pacote que eu havia recebido há uns dois meses. Nunca quis ver. Mas era do meu pai. E infelizmente era tudo que me restava. Pus em cima da cama, abri. Era um casaco azul, claro que era uma dica da mamãe, ele não sabia disso. Era perfeito. Eu me negava a gostar dele. Coloquei-o. Tanto me senti com mais calor quanto melhor, no que se diz respeito à paz de espírito.  Alana estava sentado no sofá com o controle da televisão na mão, a TV fechada. Ele me olhou quase asustada...
- Tô pronto...
- Ótimo! Casaco bonito! É novo?
- É o que o meu pai me deu...
 Ela não acreditou, demonstrou serenidade, eu me senti bem. Pegou a bolsa, o celular e a chave do carro. Eu também peguei o meu celular, não haviam chamada. Só uma mensagem do Victot...
“... to pensando em passar o natal com meu pai, ei me liga aeee... bj”
Ninguém disse nada no elevador. Entramos no carro que estava na frente do prédio. Pude ver que a TV no quarto da Ju estava ligada pela luminosidade. Eu não ia acordá-la pra dizer algo como isso. Ia matar ela. Deixa ela ter uma boa noite de sono, ao contrário de mim...
 As ruas desertas, a chuva fraca, quase uma neblina. Passamos pela rua em que eu estava caído. Por um minuto pensei em voltar no tempo. Não sair da calçada, melhor, não sair da chácara. Não deixar minha mãezinha morrer assim, sem mim.
15 de março
18h 35min.
 Naquele mês começara a chover, pouco ainda, mas já chovia. Minha vó morreu pela madrugada, na sua casa. O quarto onde ela ficara hospedada durante os últimos meses de vida na minha casa ainda estaca quente. A chácara realmente parecia morta naquele dia. A piscina redonda nem movia uma gota de sua imensidão de gotas. Eu podia ver da janela do meu quarto que ficava nos segundo andar, o velho salgueiro sendo invadido pelos morcegos sombrios.
 Meu quarto estava quase arrumado, a cama estava com a toalha sobre a colcha azul marinho. A mesinha velha de uma madeira quase fina estava quase encoberta por roupas, o notebook estava cercado por cuecas. Meu guarda-roupa de madeira era mais velho que meu avô, mamãe adorava comprar coisas antigas. Ainda pensei em levar meu iphone pro enterro, mas... Ia ser um desrespeito, vovó sempre se incomodava quando eu ouvia musica. Fiquei na cama um tempinho me arrumei muito rápido, mamãe ainda devia estar no banho. Como dever ser perder a mãe?
 Difícil. Meu pai me abandou quando eu tinha cinco anos, passado. Mas morrer... Deve ser tenso.
 Tia Sarah estava lá quando vovó morreu, parece que não foi algo tão dolorido. Não sei! Deve ser estranho morrer. Ela passou o dia em algum lugar onde os caras iriam fazer uma biópsia no corpo da vovó. Mamãe passou mal o dia todo. Chorou na sala, na cozinha, em toda a casa. Perdi a noção do tempo...
 Fui andando pelo corredor, pela janela central pude perceber que neblinava. No criado com as fotos da família faltava a central, a principal, a foto que mamãe sempre zelou. Fui em busca dela...
 A porta do quarto estava aberta, vi logo o quadro com a passagem de Paris, o grande espelho que se podia enxergar a TV e a porta do banheiro. Na cama mamãe chorava vendo o porta-retrato que havia sumido da estante. Ela nem percebeu que eu estava lá, havia algumas roupas sobre a cama. Mas ela escolheu o vestido preto que eu dei de presente pra ela no seu ultimo aniversário.
- Oi filho...
- Mãe...
- Pode ir pro carro já to descendo!
- Tá!
 Ela pegou a bolsa que competia espaço com seus prêmios de melhor radialista dos últimos quatro anos no criado-mudo. Desci a escada calmamente, abri a porta, fiquei na varanda até mamãe vir trancar a porta. Entramos no carro, calados.  O velho Gol estava frio, as janelas estavam cheias de gostas. Isso me fascinava. Mamãe dirigiu rápido, algo estranho já que ela não passava de 30km/h. A chácara estava há 10 minutos da cidade, um lugarzinho pequeno, haviam cerca de 4 mil pessoas lá. Mas era uma cidade linda, verde, fria, simples e foi lá que eu vivi a vida toda, numa escola onde todos me isolavam pelo meu jeito diferente.
 Bem que eu já estava no ultimo ano, porém, cidade pequena, eles iam viver comigo sempre.  Que pena. Mas eu gostava de lá. Era meu lugar né. Chegamos ao lugar onde estava sendo velado o corpo da vovó, mamãe estacionou ao lado do carro de tia Sarah, uma Pajero prata de arrepiar. Entramos num lugar quente e com algumas mulheres, meio velhinhas, provavelmente amigas da vovó, que rezavam quase numa voz só. Tia Sarah estava numa cadeira isolada das senhoras, olhando pro caixão que estava no centro, não quis ver vovó de primeira.
 Mamãe beijou a testa de vovó, passou um tempo lá, tia Sarah me abraçou, de forma que eu, mesmo tendo 1,80 de altura, quase me quebrava, a entendia, pelo menos tentava. Choramos um tempinho. A lua estava quase que escondida atrás das nuvens que derramavam água fracamente. Mamãe abriu as janelas bebeu café e lá nós ficamos até o amanhecer...
 Dormir numa sala onde havia um sofá, cheiro de mofo, bem desconfortável, mas... Mamãe nem dormiu, tia Sarah foi dormir na casa da vovó. Ofereci leite pra mamãe, ela tava sem fome. Aos poucos o lugar ficou lotado. Tia Sarah que chegou ao meio da multidão, falou baixinho no meu ouvido:
- Mó galera veio só pra fazer tumulto.
Ri baixinho. Criei coragem. Fui ao caixão, vi vovó, calada, triste e morta. Ela sempre foi tão feliz e agitada. Doía ver ela assim. A doença machucou muito ela, os adorados cabelos caíram com a quimioterapia, na pela havia pequenas quase imperceptíveis marquinhas de furadas com agulhas. Talvez fosse menos doloroso pra ela morrer agora. Mais uma vítima do câncer de mama.
 Durante a tarde o caixão foi posto num carro e o seguimos até o cemitério da cidade. Os jazidos estavam cobertos de flores. As cruzes brancas davam ao lugar um ar meio celestial, mesmo que a neblina forçasse a cena se tornar algo mais melancólico, como de fato foi. Mamãe pôs a foto sobre o caixão, chorado muito, todos se emocionaram, o padre orou.
 Pedi a Deus força pra mamãe, pra tia Sarah, pra mim, pra vovó que podia estar em um lugar estranho, sei lá?! A foto era linda e triste, eu nos braços do meu falecido vô, cercados por mamãe, minha tia e vovó, todos na chácara, era o natal de 1996. No outro ano vovô morreu numa parada cardíaca enquanto dirigia o carro em direção há chácara. O carro parou. O tempo não...
 Todos saíram do cemitério lentamente. Entramos no carro. Mamãe hesitou em começar a dirigir. Tia Sarah buzinou, mamãe criou coragem, hora de voltar pra casa. Começou a chover mais forte, ferozmente. Mal se via a estrada. Mamãe acelerou.
- Mãe, é melhor ir mais devagar.
- OK!
Continuou rápido. Desliguei o som que tocava Bob Dylan, o cantor favorito da mamãe:
- Vai devagar...
 Fiquei teso... Ela desacelerou de repente dois vultos surgiram, mamãe não pode parar, atropelou um.
- Mãe!
 Nunca havia dado um grito tão desesperado na minha vida. Mamãe parou... Alguém gritou:
- Gean!
- Matamos ele. – mamãe disse trêmula.
 Havia um corpo na frente do carro, uma bicicleta caída e amassada, um homem gritando, uma pobre mulher que havia acabado de perder a mãe aterrorizada e um garoto avulso. Eu. Sai do carro, me aproximei do homem enquanto seu amigo o pegava nos braços.
- Vamos levar ele pro hospital. – eu disse extremamente tenso.
 Enquanto isso na minha frente no meio de uma chuva pesadíssima, um homem belíssimo, alto, moreno e forte segurando outro homem maravilhoso, é demais pro meu coração. O rapaz colocou o atropelado no banco de trás e se sentou. Ficou nos olhando um tempinho.
-Eu sou o Pedro!- ninguém respondeu. -Desculpe o Gean, ele sempre quer dá uma de pirado! – disse rindo.
 Quis rir, mas o frio não deixou, minha roupa completamente molhada, minha calça jeans estava quase que passara do azul claríssimo pro azul marinho. Os homens atrás usavam roupas curtas e apertadas, parecia um plástico, eram ciclistas, e profissionais, realmente, ouvi dizer na escola que haveria um campeonato na cidade de bicicletas. Corremos pro hospital, ao chegarmos à cidade o homem desmaiado abriu os olhos pra alivio geral da nação. Que merda heim! Minha mãe matar alguém no dia do enterro da mãe dela.
 Ele não sangrava. Mas reclamou de dores na perna esquerda. O atropelado era mais bonito que o outro, Pedro, era alto, cabelos cacheados, devido à chuva os terem molhado estavam laranja escuro, mas acho que são loiros. Era menos forte, mas, mais sexy. O tipo de cara que passa e todo mundo baba, até os outros caras.
 Eu sempre fui um garoto quieto, nunca fui galinha nem peguei meio mundo de gente, eu só fiquei uma vez com alguém, Dani, era bonita e a única pessoa que eu falava na escola, o irmão dela me odiai por isso, chegou a me socar. Passado. Sempre soube que eu era gay. Pelo menos tinha certa idéia.
 Sempre fui isolado por toda a cidade, todos amavam minha mãe e seu programa matinal numa rádio da cidade, eu era considerado um ET, pelo menos era como eu me sentia andando pelas ruas.  Não que as pessoas me jogassem pedras ou xingamentos gratuitos, mas existem olhares dizem mais que mil palavras, nunca revidei olhares nem pequenas indiretas na escola, a boca é uma arma e o silencia a pior resposta.
 Ao ver Gean sendo levado na cadeira de rodas pra dentro do hospital eu pensei, esse é o homem certo, mas, na hora errada...




27 de novembro de 2010

zero


Um dia uma sábia senhora me disse que o tempo era uma questão de entendimento. Eu entendi que eu podia controlá-lo, talvez não, talvez fosse difícil demais achar uma forma que conseguir isso, mas quando você perde alguém que ama você quer reviver a qualquer custo isso de novo. Talvez a morte não seja o fim. Porque às vezes o fim é o começo. Tudo é uma questão de tempo...
27 de Novembro
OH 30MIN.
 Quando acordei senti a chuva fria em meu rosto, minhas costas doíam, parecia que eu havia caído do maior prédio da cidade, eu estava morto? Mal me mexia, a rua estava vazia, estava muito mais frio, eu vestia aquele casaco vermelho que ganhei da tia Sarah ano passado, era melhor ir pra casa, mamãe devia estar preocupada, Alana precisava ir pra casa. Não passavam carros, as poças só aumentavam, logo percebi que estava perto da escola, isso me deixava a quatro quarteirões de casa. A chuva ficou mais grossa, o casaco parecia pesar uns 70 quilos, eu iria cair a qualquer momento.
 Cheguei a minha rua já perdendo o restinho de energia que me restava. Vi o Seu Pedro, o porteiro, dormindo enquanto na TV passava algum filme antigo, preto e branco. Molhei o tapete do elevador, aliás, todo o corredor também. Cheguei em casa, meu celular não estava no meu bolso, nem a chave, peguei a reserva embaixo da planta murcha em frente a porta. Sujei-me de terra, limpei a mão na calça, senti que estava rasgada, alguém me estrupou?!
- Mãe?
 Silêncio total. Ouvi uma porta mexer. O celular da Alana estava sobre a mesinha ao lado das fotos de família.  Vi-me no espelho, meus usuais fios meio alaranjados, deram lugar a um cabelo preto sujo e molhado.  Haviam pegados de água até o sofá, mamãe ia me matar...
- Oi Bob! – disse Alana surgindo da cozinha.
 Pensei que Alana ia me matar, eu estava 3 horas atrasado. Ela já devia estar em casa, ligando pra amigas ou pro advogado pra falar sobre a separação repentina, ela me odiava, eu sentia isso. Eu era o culpado.
- Senta querido! – disse ela calmamente pegando uma xícara e botando o café frio que estava sobre a mesa.
- Cadê minha mãe?
 Ele me soltou um olhar arrebatador de uma tristeza incomum. Senti algo estranho, não quis entender. Ela estava muito calma, o cabelo loiro estava amarrado pra trás, os belos olhos verdes, estavam vermelhos e inchados, o vestidinho de boneca lilás parecia, mais bagunçado que o normal, ela sempre estava impecável, não agora.  Escondeu um copo pela metade de uísque, não estava bêbada, estava aterrorizada. Não conseguia falar.
 Quando sai de tarde ela estava tão feliz, falando com a mamãe sobre uma futura viagem para Mônaco, mamãe mal respondia as perguntas sobre roupas e colares, estava quase dormindo. A casa estava clara, não chovia há meses. Agora estava nebulosa, escura e fria. A chuva veio levando toda a paz rotineira da minha vida. Eu não me lembrava como cheguei naquela rua, como cai no chão.
- A sua mãe Bob...
- Diz logo...
 Fiquei branco, mais que o normal, eu tremia compulsivamente, o barulho da chuva incomodava, diferentemente de quando isso acontecia na chácara, lá era lago leve e bonito, eu chegava a dormir, a ficar mais tranqüilo. Não hoje, não aqui, não agora... O relógio mostrava 1h 15minutos.
- Ela morreu...
 A boca dela tremeu por alguns segundos mesmo depois de ter dito. Eu parei. Não escutei mais a chuva. Me senti sozinho no mundo. Meu Deus! Entendi como minha mãe se sentiu no dia que a vovó morreu, era o fim. O relógio parou. Eu era um menor abandonado agora. Doía muito. Perdi a pessoa que eu mais amei e que mais me amou. Minha companheira. Minha base. Tudo!
 Eu? Eu sou Bob Hael Castro, e essa é a história da minha vida. A história do dia em que eu morri...